quarta-feira, 19 de maio de 2010

Luiz Fernando Veríssimo


Luis Fernando Verissimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado a Roosevelt High School de Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone.

Origem Feminina



Existem várias lendas sobre a origem da Mulher.
Uma diz que Deus pôs o primeiro homem a dormir, inaugurando assim a anestesia geral, tirou uma de suas costelas e com ela fez a primeira mulher.
E que a primeira provação de Eva foi cuidar de Adão e agüentar o seu mau humor, enquanto ele convalescia da operação.
Uma variante desta lenda diz que Deus, com seu prazo para a Criação estourado, fez o homem às pressas, pensando “Depois eu melhoro”, e mais tarde, com tempo, fez um homem mais bem-acabado, que chamou Mulher, que é “melhor” em aramaico.
Outra lenda diz que Deus fez a mulher primeiro, e caprichou nas suas formas, e aparou aqui e tirou dali, e com o que sobrou fez o homem só para não jogar barro fora.
Zeus teria arrancado a mulher de sua própria cabeça.
Alguns povos nórdicos cultivam o mito da Grande Ursa Olga, origem de todas as mulheres do mundo, o que explica o fato das mulheres se enrolarem periodicamente em pêlos de animais, cedendo a um incontrolável impulso atávico, nem que seja só para experimentar, na loja, e depois quase desmaiar com o preço.
Em certas tribos nômades do Meio Oriente ainda se acredita que a mulher foi, originariamente, um camelo, que na ânsia de servir seu mestre de todas as maneiras foi se transformando até adquirir sua forma atual.
No Extremo Oriente existe a lenda de que as mulheres caem do céu, já de kimono.
E em certas partes do Ocidente persiste a crença de que mulher se compra através dos classificados, podendo-se escolher idade, cor da pele e tipo de massagem.
Todas estas lendas, claro, têm pouco a ver com a verdade científica. Hoje se sabe que o Homem é o produto de um processo evolutivo que começou com a primeira ameba a sair do mar primevo, e é o descendente direto de uma linha específica de primatas, tendo passado por várias fases até atingir o seu estágio atual e aí encontrar a Mulher, que ninguém ainda sabe de onde veio.
É certamente ridículo pensar que as mulheres também descendem de macacos. A minha mãe, não!
Uma das teses mais aceitáveis sobre o papel da mulher na evolução do homem é a de que o primeiro encontro entre os dois se deu no período paleolítico, quando um homo-sapiens mas não muito, chamado, possivelmente, Ugh, saiu para caçar e avistou, sentado numa pedra, penteando os cabelos, um ser que lhe provocou o seguinte pensamento, em linguagem de hoje:
”Isso é que é mulher e não aquilo que tenho na caverna”.
Ugh aproximou-se da mulher e, naquele seu jeitão, deu a entender que queria procriar com ela.
”Agh maakgrom grom”, ou coisa parecida. A mulher olhou-o de cima a baixo e desatou a rir.
É preciso lembrar que Ugh, embora fosse até bem apessoado pelos padrões da época, era pouco mais do que um animal aos olhos da mulher. Tinha a testa estreita e as mandíbulas pronunciadas e usava gordura de mamute nos cabelos.
A mulher disse alguma coisa como “Você não se enxerga, não?” e afastou-se, enojada, deixando Ugh desolado. Antes dela desaparecer por completo, Ugh ainda gritou: “Espera uns 10 mil anos pra você ver!”, e de volta à caverna exortou seus companheiros a aprimorarem o processo evolutivo.
Desde então, o objetivo da evolução do homem foi o de proporcionar um par à altura para a mulher, para que, vendo o casal, ninguém dissesse que ela só saía com ele pelo dinheiro, ou para espantar assaltantes.
Se não fosse por aquele encontro fortuito em alguma planície do mundo primitivo, o homem ainda seria o mesmo troglodita desleixado e sem ambição, interessado apenas em caçar e catar seus piolhos, e um fracasso social.
Mas de onde veio a primeira mulher, já que podemos descartar tanto a evolução quanto as fantasias religiosas e mitológicas sobre a criação?
Inclino-me para a tese da origem extraterrena. A mulher viria (isto é pura especulação, claro) de outro planeta.
Venho observando-as durante anos - inclusive casei com uma, para poder estudá-las mais de perto - e julgo ter colecionado provas irrefutáveis de que elas não são deste mundo. Observei que elas não têm os mesmos instintos que nós, e volta e meia são surpreendidas em devaneio, como que captando ordens de outra galáxia, embora disfarcem e digam que só estavam pensando no jantar. Têm uma lógica completamente diferente da nossa. Ultimamente têm tentado dissimular sua peculiaridade, assumindo atitudes masculinas e
fazendo coisas - como dirigir grandes empresas e xingar a mãe do motorista ao lado - impensáveis há alguns anos, o que só aumenta a suspeita de que se trata de uma estratégia para camuflar nossas diferenças, que estavam começando a dar na vista.
Quando comentamos o fato, nos acusam de ser machistas, presos a preconceitos e incapazes de reconhecer seus direitos, ou então roçam a nossa nuca com o nariz, dizendo coisas como “ioink, ioink” que nos deixam arrepiados e sem argumentos.
Claramente combinaram isto. Estão sempre combinando maneiras novas de impedir que se descubra que são alienígenas e têm desígnios próprios para a nossa terra.
É o que fazem, quando vão, todas juntas, ao banheiro, sabendo que não podemos ir atrás para ouvir.
Muitas vezes, mesmo na nossa presença, falam uma linguagem incompreensível que só elas entendem, obviamente um código para transmitir instruções do Planeta Mãe.
E têm seus golpes baixos. Seus truques covardes. Seus olhos laser, claros ou profundamente escuros, suas bocas.
Meu Deus, algumas até sardas no nariz. Seus seios, aqueles mísseis inteligentes. Aquela curva suave da coxa, quando está chegando no quadril, e a Convenção de Genebra não vê isso!
E as armas químicas - perfumes, loções, cremes. São de uma civilização superior, o que podem nossos tacapes contra os seus exércitos de encantos?
Breve dominarão o mundo. Breve saberemos o que elas querem. Se depois de sair este artigo, eu for encontrado morto com sinais de ter sido carinhosamente asfixiado, como um sorriso, minha tese está certa. Se nada me acontecer, sinal de que a tese está certa, mas elas não temem mais o desmascaramento.
O que elas querem, afinal?
Se a mulher realmente veio ao mundo para inspirar o homem a melhorar e ser digno dela, pode ter chegado à conclusão de que falhou, que este velho guerreiro nunca tomará jeito. Continuaremos a ser mulheres com defeito, uma experiência menor num planeta inferior. O que sugere a possibilidade de que, assim como veio, a mulher está pronta a partir, desiludida conosco.
E se for isso que elas conspiram nos banheiros? A retirada? Seríamos abandonados à nossa própria estupidez. Elas levariam as suas filhas e nos deixariam com caras de Ugh.
Posso ver o fim da nossa espécie. Nossos melhores cientistas abandonando tudo e se dedicando a intermináveis testes com a costela, depois de desistir da mulher sintética. Tentando recriar a mágica da criação.
Uma mulher, qualquer mulher, de qualquer jeito! Prometemos que desta vez não as decepcionaremos! Uma mulher! Como é que se faz uma mulher?

Luís Fernando Veríssimo

O Nariz


Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sombrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.
- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
- Isso o quê?
- Esse nariz.
- Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei.
- Logo você, papai…
Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias.
A mulher impacientou-se.
- Tire esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta.
A mulher o interpelou.
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
- Mas com esse nariz?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz…
- Pense nos vizinhos. Pense nos cliente.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”) fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos.
– Nunca vi ele assim.
Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
- Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
- Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz.
- Mas, por quê?
- Por quê não?
Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.
- Papai…
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- É sobre esse nariz…
- O meu nariz outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
- O nariz é meu e vou continuar a usar.
- Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer…
- Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
- Se não faz diferença, porque não usar?
- Mas, mas…
- Minha filha…
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.
- Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como era antes.
- Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
- É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…
O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.

Luiz Fernando Veríssimo

Fábio Fernandes


Jornalista, tradutor. Escritor, roteirista e dramaturgo. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pesquisador de cibercultura e professor do cursos de Tecnologia e Mídias Digitais e Jogos Digitais da PUC-SP. Interesses de pesquisa: comunicação e cibercultura, semiótica, teoria literária, ficção científica, tribos e subculturas, novas mídias, games.

Charlotte Sometimes

Charlotte Sometimes
Fábio Fernandes
assim como Júlio está consciente agora, mesmo que não se lembre de como foi parar ali, naquele lugar
escuro, úmido e apertado, não o lugar escuro, úmido e apertado dentro do qual ele queria estar naquele
momento, mas um lugar envolto em brumas, imagens ligeiramente distorcidas, como se vistas através de
um vidro coberto por uma fina camada de condensação, ou através de olhos cansados e pesados de fumo,
bebida ou ácido ou quem sabe até as três coisas juntas, não seria impossível, e em todo caso seria
provavelmente mais viável que um sonho, enfim, poderia também ser um sonho, mas isso se ele não
tivesse certeza de que está tão desperto, coisa que a latinha de cerveja que praticamente congela sua mão
não o deixa esquecer e nisso é muito mais eficaz do que qualquer investigação filosófica a respeito da
natureza da realidade, ou do que qualquer livro de Philip K. Dick ou Cortázar. Júlio está no meio da pista
de dança, atravessando-a à procura. De quem? Não lembra. Pede licença, esbarra aqui, acotovela acolá,
precisa se locomover, atravessar o mar de gente indefinida e imprecisa que se avoluma e se espessa na
pista de dança e nos corredores obscuros, chegar a algum lugar mesmo sem saber onde, porque navegar é
preciso, viver não é preciso, diz o poeta, e nesse instante é como se ele ouvisse o som da voz triste e
gritada de Amália Rodrigues se derramando pelas caixas de som ao invés de, ao invés de, ao invés de que
mesmo? Júlio não sabe, só sabe que anda, anda como se as pernas não lhe pertencessem, e quando ele se
dá conta é como se elas não pertencessem mesmo a seu corpo, porque não as sente, seus sentidos estão
tomados de assalto pelo ambiente. Os ouvidos, pelos vocais de Robert Smith, porque agora ele se lembra
que o que sai das carrapetas do DJ não é fado, bolero ou tanga, mas o bom e velho britpop dos eighties,
para ser específico "Charlorte Sornetimes", a canção do The Cure que sempre invadiu seus ouvidos com
uma sensação arrebatadora, mas que agora é perturbadora, incômoda, labiríntica, como se tirasse os seus
pés do chão, não de arrebatamento extático, mas como se fosse um ataque de labirintite, um terremoto dos
sentidos, um impacto profundo no ouvido interno, um soco na cara da realidade que quase faz com que
seus olhos saltem de tão arregalados para tentar ver além do véu de Maya que embaça tudo à sua frente, e
enquanto isso ele anda por entre as pessoas no ambiente apertado e sufocante. Ele busca uma saída, e seus
pés se dirigem para a escada em espiral antes mesmo de se dar conta, se dar conta, se dar conta de quê?
Preciso parar de beber, ele pensa sem se levar a sério descendo os degraus estreitos de ferro fundido,
porque tem certeza de que toda vez que bebe demais pensa exatamente a mesma coisa. Isso quando não
tem seus cada vez mais freqüentes brancos, buracos no tecido da memória, freqüentemente no quesito
"localização": Júlio não sabe onde está, e tem uma desconfiança amarga de que não é a primeira vez.
Também não é a primeira vez que ele vê a aranha verde pendurada em sua teia de corda num dos cantos
do teto preto do andar térreo, particularmente visível a partir do antepenúltimo degrau da escada, no
sentido de quem desce. A aranha de espuma é gigantesca, deve ser do tamanho de sua cabeça e reluz
fosforescente. Só então Júlio lembra onde está: U-Bahn. Um bar dark em Botafogo, zona sul do Rio de
Janeiro. As paredes pintadas de preto, os rapazes e moças, todos de cabelos negros ou pintados de,
atendem os clientes, usam todos pancake branco e batom roxo, e vestem roupas inteiramente pretas. Ele
também está vestido de preto, pois é o código da sua tribo. Ninguém é barrado se entrar vestido de outras
cores, mas não seria a mesma coisa. Júlio sabe que já não é a mesma coisa há muito tempo. Porque acaba
de se dar conta de algo.
O U-Bahn fechou há quase vinte anos.
Agora Júlio sabe que está sonhando. Ele tem dessas coisas de vez em quando: a consciência do
sonho, aquele instante mágico, aquela epifania que o arrebata, e desta vez, sim, é um arrebatamento, uma
excitação percorrendo sua espinha, a certeza de que está vivendo um momento único. O momento em
que, ainda sonhando, ele percebe que sonha.
E sabe como acordar.
Porque Júlio conhece a chave do sonho.
Júlio nunca contou a ninguém, mas houve um tempo em que controlava os próprios sonhos. Não
sabia se isso era normal ou se só acontecia com ele; nunca lhe ocorreu perguntar a ninguém. Não
comentava nem com o analista. Tinha medo de que o achassem maluco.
No fundo, porém, o que ele temia realmente era descobrir que todo mundo sentia a mesma coisa,
que ele era apenas um garoto normal. Júlio nunca quis ser um sujeito normal.
Mas tudo isso já faz muito tempo. Agora Júlio não controla mais seus sonhos. Embora algo tenha
restado daquele tempo: ele quase sempre sabe quando está sonhando. Mesmo que agora seja
apenas um observador dentro da própria cabeça, pelo menos é um observador consciente. Assim como
está consciente agora, mesmo que não se lembre de como foi parar ali.
O ambiente do sonho é como ele se lembrava: corredores pintados de preto fosco, onde o sol não
bate, onde não bate nenhuma luz mas onde muitos corações batem e doem, doem porque têm que de doer,
doem because it's there, porque é por aí mesmo, porque ninguém lhes disse que poderia ser diferente. A
Júlio disseram muitas vezes, mas ele sabe que isso nunca fez muita diferença. Não que isso importe
agora.
De repente a saída lhe vem à mente como uma iluminação. Volta correndo para o andar de cima,
quase esbarrando num casal que desce e cujos rostos ele não vê, porque simplesmente não consegue
levantar a cabeça para encará-los, e de qualquer maneira sabe que se conseguisse não os veria porque eles
estariam envoltos por alguma névoa ou textura gasosa semelhante - os sonhos têm essa lógica às vezes.
E uma das equações que compõem essa lógica é a chave do sonho: um dispositivo mental que
permite que aquele que sonha acorde no instante em que cumpre uma rotina predetermmada. Para Júlio, a
chave do sonho é o que ele chama de enfrentar o monstro.
Funciona assim: Júlio se afasta da multidão e envereda pelo primeiro corredor que encontra. Vai
andando até encontrar um trecho sem iluminação, e ele sabe que esse trecho sempre existe e está lá,
esperando por ele. Ao penetrar essa zona crepuscular, subitamente Júlio tem a certeza de que verá um
monstro terrível, cujo toque será o suficiente para matá-lo do coração. O medo que ele sente basta para
evitar que esse temido encontro se realize, fechando assim o ciclo do sonho. Júlio acorda.
Isso é o que sempre acontece.
Mas hoje não.
Os corredores têm fim e nenhum deles é suficientemente escuro e deserto para que Júlio realize seu
desejo. Ele os percorre impávido colosso, dolorosamente consciente de cada passo, da textura das
paredes, do som que ainda invade seus ouvidos sem pedir licença e que está lhe dando dor de cabeça,
coisa que aliás Júlio nunca sentiu em sonho algum e que já começa a incomodar.
Este é um sonho difícil.
Depois de alguns minutos, desiste dessa abordagem. Está ofegante. Cansado. Seu fôlego não é mais
o mesmo. Nem mesmo sonhar é como antigamente.
A última técnica de que ele se lembra para despertar é a mais boba, mais trivial - e por isso mesmo a
mais dura: lembrar de alguém que tenha a ver com aquele ambiente.
Ela.
Júlio não queria mais pensar nela. Não depois de tudo.
Normalmente se lembrar de alguém dentro do sonho faz com que ele fique ansioso para encontrar
essa pessoa. Alguns minutos horríveis se passam, durante os quais ele corre pelo ambiente, tentando
encontrar essa pessoa. E então, nervoso, a adrenalina acelera seu coração até um ponto insuportável para
manter suas ondas cerebrais num padrão compatível com o sono, e ele finalmente acorda.
Mas Júlio não acorda.
Não pode ser um sonho, ele pensa, lembrando-se daquela história japonesa - ou seria chinesa? - que
leu há tanto tempo sobre o homem que sonhou que era uma borboleta e, ao despertar, não sabia dizer se
era realmente um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava que
era um homem. O sonho é tão vívido, tão real, que a explicação mais simples só pode ser a seguinte: isto
não é um sonho. Ceci n'est pas un réve, é assim mesmo que se diz? Ele deve ter algum dia sonhado com o
futuro, com um dia quinze anos distante no tempo, em que o bar já não existiria mais, nem o seu amor por
ela, e onde ele havia tentado de tudo, absolutamente tudo, para esquecer.
Júlio não E nem precisa procurar muito.
Ela está numa das mesas do térreo. Embaixo da aranha verde. Júlio nem sabe como não havia
reparado nela quando passou por ali antes.
A garota continua exatamente do jeito Júlio se lembrava. Os cabelos curtos pretos com mechas
roxas, sem maquiagem alguma, a pele pálida de tão branca. Ele lembra que gostava tanto de correr as
pontas dos dedos pelas veias azuladas dos braços dela.
Ele para na frente da mesa. Esboça um sorriso e tenta dizer alguma coisa, algo inteligente,
interessante, qualquer coisa menos "eu te amo" ou "que saudade", coisas piegas demais para o espírito
libertário dela. Mas não consegue.
Não consegue fazer absolutamente nada. Nem falar, nem mover um músculo.
Então é como se a luz fraca do local mudasse, e tudo adquirisse uma nova perspectiva; Júlio ainda
não sabe se está sonhando, mas sabe quando bebeu demais: a sensação de irrealidade seguida de mal-estar
que a bebida lhe dá são inconfundíveis.
É nesse instante que Júlio percebe que ela não está exatamente como ele se lembrava, mas um
pouquinho mais gorda, mais acabada. Como ela mesma vivia se achando.
É tão esquisito isso, ele acha. Quase como se o sonho não fosse dele, mas dela.
A idéia é tão imbecil que ele a descarta no ato.
Um minuto se passa. Dois. Pelo menos é o que ele acha; não se lembra se está sem relógio, e não
consegue erguer a mão para conferir. Nada acontece. Ele não diz palavra. Nem ela.
Ela não olha para ele em momento algum.
Ela chora.
Júlio não entende mais nada. Se isto é um sonho, foge à compreensão dele, pois nunca nenhum de
seus sonhos foi tão nítido e custou tanto a terminar depois que ele descobre o que está acontecendo. Júlio
fica nervoso. Sente o suor pegajoso grudar a camisa de algodão branco sobre a pele; o colarinho começa a
roçar o pescoço de um jeito que ele sabe que depois vai irritar a pele. Dá uma risada: você está sonhando,
imbecil, vai acordar novinho em folha, provavelmente suando em bicas, mas não a ponto de amanhecer
com o pescoço vermelho e lanhado.
Júlio coloca a mão sobre a nuca, e sente uma coisa oleosa, meio gosmenta. Leva a mão à frente dos
olhos e tenta discernir o que é aquilo no meio da luz fraca.
Não conseguiria nunca discernir a substância escura se dependesse só da visão. Cheirou.
Sangue.
Esse susto deveria ser o suficiente para acordá-la. Chaves de sonho são o equivalente psicológico
das chaves de um soneto. O último acorde de uma música, a última frase de um conto. Por que o sonho
não termina se ele já fez tudo o que devia fazer?
- Não depende de nós - disse uma voz atrás dele.
Os pêlos de sua nuca se eriçaram. A voz era tão baixa que parecia um sussurro, ou melhor, um
zumbido. Como se abelhas tivessem aprendido subitamente o dom da fala.
Júlio se vira para encarar seu interlocutor.
É um tubo de luz fluorescente.
Com aquela lógica perversa e infalível que só o estado de sonho apresenta, Júlio não olha para os
lados à procura de um humano. Sabe que foi a luz quem falou. Isto posto, ela prossegue:
- Depende só dela - ela diz, agora com uma voz menos sibilante e mais feminina.
- Por que dela? - Júlio pergunta.
Júlio jura que a luz dá de ombros.
- De quem você acha que é o sonho? - ela diz.
Júlio solta uma gargalhada.
- Essa foi ótima, preciso lembrar de anotar isso tudo para contar à minha analista amanhã - diz.
- Vai ser meio difícil - diz a luz, e ele ainda se pega tentando descobrir onde é a boca do tubo.
- Por quê? - mas ele já sabe a resposta que vem pela proa.
- Você não lembra?
Então é como se o sonho voltasse a ser dele, como se a frase emitida pela luz - porque, fascinado,
percebe que a luz fala com ele por comprimentos de onda - o liberasse, como as três pequenas palavras
fossem um koan zen-budista e o elevassem a uma espécie de nirvana, de sonho dentro de um sonho, ou da
realidade, e ele se lembra de um fiapo de consciência escorrendo de seus olhos junto com os fiapos de
sangue que ainda fluíam pelos pulsos cortados que empapavam o carpete cinza-grafite da sala, o som
ligado - tocando The Cure, agora ele se lembra - e ela chegando, olhando a cena e soltando um grito
doído que o arrepiou e apressou seu adormecimento.
E depois ele não se lembra de mais nada.
Isso não parece um texto de Gertrude Stein?, ele pensa. Lembra que ela gostava muito de Gertrude
Stein. Foi ela quem o apresentou à escritora, aliás.
Mas ele nunca leu Gertrude Stein.
Subitamente Júlio percebe que não está mais na festa, na verdade não estava desde que a luz
começou a falar com ele.
Eles estão num corredor escuro, que a luz ajuda a iluminar, mas não tanto quanto Júlio gostaria. Ele
consegue ver paredes cobertas com tinta cinza-grafite, riscadas e descascadas. Muito velhas. O corredor é
apertado e ele não consegue ver fim. Porque a luz não está no fim do túnel.
- É para cá que venho quando me apagam - a luz lhe diz.
- É para cá que virei quando ela deixar de me sonhar?, ele pergunta.
A luz se cala.
Então Júlio sente outro arrepio.
- É para cá que sempre venho, não é?
A luz nem pisca. Mas não precisa. Ele sabe que isto já aconteceu antes. E acontecerá de novo.
Todas as vezes em que ela sonhar com Júlio, ele será resgatado daquele arquivo da memória e ganhará
vida na rua, na chuva, na fazenda ou simplesmente naquele clube, onde eles foram felizes.
É mais do que poderia esperar.
No fundo do corredor escuro, Júlio sorri. O que mais temia não aconteceu: ela não se esqueceu dele.
Agora Júlio sabe que não está só.

Fábio Fernandes

Se um viajante a bordo de um disco...



... caminhasse como você caminha pelos corredores indefinidos, as pontas dos dedos tateando as paredes
metálicas que brilham fraquíssimas uma fosforescência arroxeada lembrando luz negra, sentiria o mesmo frio
que você sente. Está frio, mas você sua; não é para menos. Afinal de contas, por toda a sua vida você desejou
fazer contato com seres extraterrestres e entrar num disco voador.
Você conseguiu.
Devia estar contente, não?
Mas sua fantasia não contava com um seqüestro no alto de um morro em São Tomé das Letras, apenas de
bermuda e camiseta. E faltando o essencial: o par de óculos que lhe faz tanta falta. Você sua, mas é de medo.
De qualquer forma, você é poupado do constrangimento de ter que enxergar algo de importante pelas
paredes maciças dos corredores. Elas não têm fim, e você não vê qualquer abertura ou algo que se assemelhe a
uma porta, passagem, duto de ventilação, o que seja. Você tenta rir: onde já se viu isso? Preocupar-se mais com
o que poderia lhe ser mostrado do que o que lhe está acontecendo?
Você só não é poupado de saber quem o pegou no alto do morro.
O alienígena aparece na outra extremidade do corredor, e vem em sua direção. Seu grau de miopia é grande,
mas você também não é cego: sabe perfeitamente que o ponto escuro contrastando com o metal polido dos
corredores não estava lá antes, e que seu aumento constante é sinônimo de movimento; que você está a bordo
de uma nave extraterrestre é óbvio, você viu as luzes no alto do morro segundos antes de ser erguido do solo.
Portanto, isso só lhe deixa uma opção lógica e racional: o ponto escuro que se aproxima é um alienígena.
Você olha para trás, ou tenta: aos seus cristalinos defeituosos, o cenário é rigorosamente igual ao da frente,
ou seja, uma indefinição metálica. Não há para onde fugir. Mais cedo ou mais tarde o alienígena o alcançará.
Você respira fundo e fica onde está.
E ele se aproxima.
O medo que você esperava sentir não é tão grande. Tantos filmes de ficção científica tinham que servir para
alguma coisa, afinal. O alienígena é mais baixo que você, e não é humanóide; a carapaça brilhosa e os quatro ou
cinco pares de patas mais lembram um inseto. Você sente um cheiro doce demais, quase enjoativo.
Você só se sobressalta quando o alienígena subitamente estica o pescoço comprido e fino e praticamente
encosta um rosto impossível de definir: negro, cheio de rugas que franzem em vários pontos da bola ovalada
que examina a sua face.
A análise não dura muito. Com movimentos bruscos, a criatura - não, criatura não, você se corrige; um ser
que habita uma nave dessas, que cruza o espaço para estudar outras raças,sem dúvida pertence a uma categoria
superior - dá as costas para ele e volta por onde veio. Você continua onde está. Mas o ser alienígena para a
poucos passos. Você força a vista; ele se virou, ou assim parece. Está me esperando, você pensa. E, respirando
fundo mais uma vez, o segue. Sempre apoiando a mão na parede.
A caminhada é longa, mais de meia hora. Você sente a panturrilha esquerda. Mas seu guia é incansável.
Por fim, vocês saem do corredor interminável. Impossível abarcar o diâmetro do aposento onde
desembocam, mas ele é grande, isso você consegue assimilar. Uma lufada de ar fresco -ou refrigerado - se
choca com seu rosto e lhe invade as narinas. Você se sente revigorado.
Contudo, o alienígena não o espera. Por um momento, é impossível localizá-lo: o aposento parece queimar
com luzes de cores quentes, todas estrategicamente colocadas em diversos pontos. Parecem iluminar coisas
específicas, e você quase chega perto da mais próxima, mas então ouve um ruído à sua direita, e uma mancha
negra se movendo. Você localizou o alienígena.
Você perde a noção do tempo; o alienígena passa e para por cada um dos focos de luz. Sob cada um, um
objeto, uma forma de vida, um estado da matéria. Você sabe que o que o alienígena está tentando lhe mostrar
transcenderia a sua compreensão mesmo que pudesse enxergar direito. E você não pode.
E tenta explicar isso para ele, já sabendo que não será fácil. Através de gestos bastante improvisados - você
então se lembra de um amigo mímico, e lamenta não ter a habilidade dele - tenta explicar que as luzes o
acordaram de repente, e que você saiu da barraca sem seus óculos. Gostaria também de acrescentar que o grau
em cada lente é de 9.0, e que estava de operação corretiva marcada para dali a um mês, mas de que adiantaria?
De repente, o alienígena dispara na direção do corredor. Você tenta correr atrás dele, tomando cuidado para
não tropeçarem nada.
Desta vez vocês não demoram muito. Em minutos, entram em outra sala. E seu medo volta.
Pois a sala - desta vez é possível perceber seu diâmetro, é tão grande quanto a anterior - está repleta de
alienígenas, todos iguais ao seu guia. Iguais não, você percebe assim que um deles passa raspando pelo seu
restritíssimo campo visual: mudam as tonalidades, a altura, o diâmetro do rosto. Como os humanos. Você não
sabe por quê, mas isso o faz se sentir bem melhor.
Seu guia se detém diante de dois outros. Você já está começando a ficar irritado com o silêncio quase
absoluto da sala: devem conversar em ultra ou infra-sons, você não tem idéia.
No entanto, eles não falam muito. Logo tomam a dianteira do seu guia e entram em outro corredor, no
extremo oposto da sala. O alienígena se volta para você, e os acompanha. O que mais você pode fazer?
O outro corredor leva a uma sala pequena, cheia de luzes e grandes estruturas reluzentes que você -
obviamente - não consegue enxergar suficiente para reconhecer. Mas, à medida que se aproxima, você percebe:
as estruturas metálicas são leitos. Você está na enfermaria da nave.
Eles se viram em sua direção. Seu guia estende uma das patas e aponta para o leito mais próximo. Ele está
pedindo que se deite na cama. Talvez você pudesse recusar, talvez houvesse outro jeito, mas para todos os
efeitos você está sob o poder deles. Obedece.
Os alienígenas cercam o leito. As luzes fortes o irritam, tornando tudo cada vez mais borrado.
E então seu rosto se abre num sorriso.
Um dos seres leva duas das patas ao seu rosto, à altura dos olhos. Faz gestos em forma de cruz. Outro se
aproxima e fez gestos circulares. Não olham para você. Parecem discutir. Então, você tem certeza: eles
compreenderam o que você quis dizer. Você será operado. Sua visão será corrigida. Um gesto de boa vontade
para com um irmão de outro mundo.
Outro alienígena - certamente o anestesista - enfia uma agulha grossa na veia entre braço e antebraço. Dói.
Mas você suportar isso.
Em segundos seu corpo começa a sentir torpor. Você se entrega à inconsciência, confiante. Eles são
superiores: logo, a conclusão é óbvia. Eles sabem o que estão fazendo. Você ficará curado.
O tempo passa. Você perdeu completamente a noção dos dias. Não há qualquer referencial. Tudo de que
você consegue se lembrar é o gosto amargo na boca ao despertar da anestesia,os toques suaves das patas dos
alienígenas e a sensação de terror ao perceber que alguma coisa não saiu conforme o esperado.
De qualquer forma, você é poupado do constrangimento de ter que enxergar algo de importante. De ter que
enxergar algo.
Cansados, seus dedos tateiam pelos corredores da nave. Não é preciso mais se preocupar com a
luminosidade negra que doía na sua vista. Agora só lhe resta esperar que eles o deixem em algum lugar na
Terra, e seus dedos possam, aliviados, reconhecer o solo, as pedras, o rosto de alguém querido.

Fábio Fernandes

Manoel de Barros


Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá (MT) no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, em 19 de dezembro de 1916, filho de João Venceslau Barros, capataz com influência naquela região. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Atualmente mora em Campo Grande (MS). É advogado, fazendeiro e poeta.
Seu primeiro livro foi publicado no Rio de Janeiro, há mais de sessenta anos, e se chamou "Poemas concebidos sem pecado". Foi feito artesanalmente por 20 amigos, numa tiragem de 20 exemplares e mais um, que ficou com ele.
Hoje o poeta é reconhecido nacional e internacionalmente como um dos mais originais do século e mais importantes do Brasil. Guimarães Rosa, que fez a maior revolução na prosa brasileira, comparou os textos de Manoel a um "doce de coco". Foi também comparado a São Francisco de Assis pelo filólogo Antonio Houaiss, "na humildade diante das coisas. (...) Sob a aparência surrealista, a poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor." Segundo o escritor João Antônio, a poesia de Manoel vai além: "Tem a força de um estampido em surdina. Carrega a alegria do choro." Millôr Fernandes afirmou que a obra do poeta é "'única, inaugural, apogeu do chão." E Geraldo Carneiro afirma: "Viva Manoel violer d'amores violador da última flor do Laço inculta e bela. Desde Guimarães Rosa a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica". Manoel, o tímido Nequinho, se diz encabulado com os elogios que "agradam seu coração".
Numa entrevista concedida a José Castello, do jornal "O Estado de São Paulo", em agosto de 1996, ao ser perguntado sobre qual sua rotina de poeta, respondeu:
"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."