quarta-feira, 19 de maio de 2010

Charlotte Sometimes

Charlotte Sometimes
Fábio Fernandes
assim como Júlio está consciente agora, mesmo que não se lembre de como foi parar ali, naquele lugar
escuro, úmido e apertado, não o lugar escuro, úmido e apertado dentro do qual ele queria estar naquele
momento, mas um lugar envolto em brumas, imagens ligeiramente distorcidas, como se vistas através de
um vidro coberto por uma fina camada de condensação, ou através de olhos cansados e pesados de fumo,
bebida ou ácido ou quem sabe até as três coisas juntas, não seria impossível, e em todo caso seria
provavelmente mais viável que um sonho, enfim, poderia também ser um sonho, mas isso se ele não
tivesse certeza de que está tão desperto, coisa que a latinha de cerveja que praticamente congela sua mão
não o deixa esquecer e nisso é muito mais eficaz do que qualquer investigação filosófica a respeito da
natureza da realidade, ou do que qualquer livro de Philip K. Dick ou Cortázar. Júlio está no meio da pista
de dança, atravessando-a à procura. De quem? Não lembra. Pede licença, esbarra aqui, acotovela acolá,
precisa se locomover, atravessar o mar de gente indefinida e imprecisa que se avoluma e se espessa na
pista de dança e nos corredores obscuros, chegar a algum lugar mesmo sem saber onde, porque navegar é
preciso, viver não é preciso, diz o poeta, e nesse instante é como se ele ouvisse o som da voz triste e
gritada de Amália Rodrigues se derramando pelas caixas de som ao invés de, ao invés de, ao invés de que
mesmo? Júlio não sabe, só sabe que anda, anda como se as pernas não lhe pertencessem, e quando ele se
dá conta é como se elas não pertencessem mesmo a seu corpo, porque não as sente, seus sentidos estão
tomados de assalto pelo ambiente. Os ouvidos, pelos vocais de Robert Smith, porque agora ele se lembra
que o que sai das carrapetas do DJ não é fado, bolero ou tanga, mas o bom e velho britpop dos eighties,
para ser específico "Charlorte Sornetimes", a canção do The Cure que sempre invadiu seus ouvidos com
uma sensação arrebatadora, mas que agora é perturbadora, incômoda, labiríntica, como se tirasse os seus
pés do chão, não de arrebatamento extático, mas como se fosse um ataque de labirintite, um terremoto dos
sentidos, um impacto profundo no ouvido interno, um soco na cara da realidade que quase faz com que
seus olhos saltem de tão arregalados para tentar ver além do véu de Maya que embaça tudo à sua frente, e
enquanto isso ele anda por entre as pessoas no ambiente apertado e sufocante. Ele busca uma saída, e seus
pés se dirigem para a escada em espiral antes mesmo de se dar conta, se dar conta, se dar conta de quê?
Preciso parar de beber, ele pensa sem se levar a sério descendo os degraus estreitos de ferro fundido,
porque tem certeza de que toda vez que bebe demais pensa exatamente a mesma coisa. Isso quando não
tem seus cada vez mais freqüentes brancos, buracos no tecido da memória, freqüentemente no quesito
"localização": Júlio não sabe onde está, e tem uma desconfiança amarga de que não é a primeira vez.
Também não é a primeira vez que ele vê a aranha verde pendurada em sua teia de corda num dos cantos
do teto preto do andar térreo, particularmente visível a partir do antepenúltimo degrau da escada, no
sentido de quem desce. A aranha de espuma é gigantesca, deve ser do tamanho de sua cabeça e reluz
fosforescente. Só então Júlio lembra onde está: U-Bahn. Um bar dark em Botafogo, zona sul do Rio de
Janeiro. As paredes pintadas de preto, os rapazes e moças, todos de cabelos negros ou pintados de,
atendem os clientes, usam todos pancake branco e batom roxo, e vestem roupas inteiramente pretas. Ele
também está vestido de preto, pois é o código da sua tribo. Ninguém é barrado se entrar vestido de outras
cores, mas não seria a mesma coisa. Júlio sabe que já não é a mesma coisa há muito tempo. Porque acaba
de se dar conta de algo.
O U-Bahn fechou há quase vinte anos.
Agora Júlio sabe que está sonhando. Ele tem dessas coisas de vez em quando: a consciência do
sonho, aquele instante mágico, aquela epifania que o arrebata, e desta vez, sim, é um arrebatamento, uma
excitação percorrendo sua espinha, a certeza de que está vivendo um momento único. O momento em
que, ainda sonhando, ele percebe que sonha.
E sabe como acordar.
Porque Júlio conhece a chave do sonho.
Júlio nunca contou a ninguém, mas houve um tempo em que controlava os próprios sonhos. Não
sabia se isso era normal ou se só acontecia com ele; nunca lhe ocorreu perguntar a ninguém. Não
comentava nem com o analista. Tinha medo de que o achassem maluco.
No fundo, porém, o que ele temia realmente era descobrir que todo mundo sentia a mesma coisa,
que ele era apenas um garoto normal. Júlio nunca quis ser um sujeito normal.
Mas tudo isso já faz muito tempo. Agora Júlio não controla mais seus sonhos. Embora algo tenha
restado daquele tempo: ele quase sempre sabe quando está sonhando. Mesmo que agora seja
apenas um observador dentro da própria cabeça, pelo menos é um observador consciente. Assim como
está consciente agora, mesmo que não se lembre de como foi parar ali.
O ambiente do sonho é como ele se lembrava: corredores pintados de preto fosco, onde o sol não
bate, onde não bate nenhuma luz mas onde muitos corações batem e doem, doem porque têm que de doer,
doem because it's there, porque é por aí mesmo, porque ninguém lhes disse que poderia ser diferente. A
Júlio disseram muitas vezes, mas ele sabe que isso nunca fez muita diferença. Não que isso importe
agora.
De repente a saída lhe vem à mente como uma iluminação. Volta correndo para o andar de cima,
quase esbarrando num casal que desce e cujos rostos ele não vê, porque simplesmente não consegue
levantar a cabeça para encará-los, e de qualquer maneira sabe que se conseguisse não os veria porque eles
estariam envoltos por alguma névoa ou textura gasosa semelhante - os sonhos têm essa lógica às vezes.
E uma das equações que compõem essa lógica é a chave do sonho: um dispositivo mental que
permite que aquele que sonha acorde no instante em que cumpre uma rotina predetermmada. Para Júlio, a
chave do sonho é o que ele chama de enfrentar o monstro.
Funciona assim: Júlio se afasta da multidão e envereda pelo primeiro corredor que encontra. Vai
andando até encontrar um trecho sem iluminação, e ele sabe que esse trecho sempre existe e está lá,
esperando por ele. Ao penetrar essa zona crepuscular, subitamente Júlio tem a certeza de que verá um
monstro terrível, cujo toque será o suficiente para matá-lo do coração. O medo que ele sente basta para
evitar que esse temido encontro se realize, fechando assim o ciclo do sonho. Júlio acorda.
Isso é o que sempre acontece.
Mas hoje não.
Os corredores têm fim e nenhum deles é suficientemente escuro e deserto para que Júlio realize seu
desejo. Ele os percorre impávido colosso, dolorosamente consciente de cada passo, da textura das
paredes, do som que ainda invade seus ouvidos sem pedir licença e que está lhe dando dor de cabeça,
coisa que aliás Júlio nunca sentiu em sonho algum e que já começa a incomodar.
Este é um sonho difícil.
Depois de alguns minutos, desiste dessa abordagem. Está ofegante. Cansado. Seu fôlego não é mais
o mesmo. Nem mesmo sonhar é como antigamente.
A última técnica de que ele se lembra para despertar é a mais boba, mais trivial - e por isso mesmo a
mais dura: lembrar de alguém que tenha a ver com aquele ambiente.
Ela.
Júlio não queria mais pensar nela. Não depois de tudo.
Normalmente se lembrar de alguém dentro do sonho faz com que ele fique ansioso para encontrar
essa pessoa. Alguns minutos horríveis se passam, durante os quais ele corre pelo ambiente, tentando
encontrar essa pessoa. E então, nervoso, a adrenalina acelera seu coração até um ponto insuportável para
manter suas ondas cerebrais num padrão compatível com o sono, e ele finalmente acorda.
Mas Júlio não acorda.
Não pode ser um sonho, ele pensa, lembrando-se daquela história japonesa - ou seria chinesa? - que
leu há tanto tempo sobre o homem que sonhou que era uma borboleta e, ao despertar, não sabia dizer se
era realmente um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava que
era um homem. O sonho é tão vívido, tão real, que a explicação mais simples só pode ser a seguinte: isto
não é um sonho. Ceci n'est pas un réve, é assim mesmo que se diz? Ele deve ter algum dia sonhado com o
futuro, com um dia quinze anos distante no tempo, em que o bar já não existiria mais, nem o seu amor por
ela, e onde ele havia tentado de tudo, absolutamente tudo, para esquecer.
Júlio não E nem precisa procurar muito.
Ela está numa das mesas do térreo. Embaixo da aranha verde. Júlio nem sabe como não havia
reparado nela quando passou por ali antes.
A garota continua exatamente do jeito Júlio se lembrava. Os cabelos curtos pretos com mechas
roxas, sem maquiagem alguma, a pele pálida de tão branca. Ele lembra que gostava tanto de correr as
pontas dos dedos pelas veias azuladas dos braços dela.
Ele para na frente da mesa. Esboça um sorriso e tenta dizer alguma coisa, algo inteligente,
interessante, qualquer coisa menos "eu te amo" ou "que saudade", coisas piegas demais para o espírito
libertário dela. Mas não consegue.
Não consegue fazer absolutamente nada. Nem falar, nem mover um músculo.
Então é como se a luz fraca do local mudasse, e tudo adquirisse uma nova perspectiva; Júlio ainda
não sabe se está sonhando, mas sabe quando bebeu demais: a sensação de irrealidade seguida de mal-estar
que a bebida lhe dá são inconfundíveis.
É nesse instante que Júlio percebe que ela não está exatamente como ele se lembrava, mas um
pouquinho mais gorda, mais acabada. Como ela mesma vivia se achando.
É tão esquisito isso, ele acha. Quase como se o sonho não fosse dele, mas dela.
A idéia é tão imbecil que ele a descarta no ato.
Um minuto se passa. Dois. Pelo menos é o que ele acha; não se lembra se está sem relógio, e não
consegue erguer a mão para conferir. Nada acontece. Ele não diz palavra. Nem ela.
Ela não olha para ele em momento algum.
Ela chora.
Júlio não entende mais nada. Se isto é um sonho, foge à compreensão dele, pois nunca nenhum de
seus sonhos foi tão nítido e custou tanto a terminar depois que ele descobre o que está acontecendo. Júlio
fica nervoso. Sente o suor pegajoso grudar a camisa de algodão branco sobre a pele; o colarinho começa a
roçar o pescoço de um jeito que ele sabe que depois vai irritar a pele. Dá uma risada: você está sonhando,
imbecil, vai acordar novinho em folha, provavelmente suando em bicas, mas não a ponto de amanhecer
com o pescoço vermelho e lanhado.
Júlio coloca a mão sobre a nuca, e sente uma coisa oleosa, meio gosmenta. Leva a mão à frente dos
olhos e tenta discernir o que é aquilo no meio da luz fraca.
Não conseguiria nunca discernir a substância escura se dependesse só da visão. Cheirou.
Sangue.
Esse susto deveria ser o suficiente para acordá-la. Chaves de sonho são o equivalente psicológico
das chaves de um soneto. O último acorde de uma música, a última frase de um conto. Por que o sonho
não termina se ele já fez tudo o que devia fazer?
- Não depende de nós - disse uma voz atrás dele.
Os pêlos de sua nuca se eriçaram. A voz era tão baixa que parecia um sussurro, ou melhor, um
zumbido. Como se abelhas tivessem aprendido subitamente o dom da fala.
Júlio se vira para encarar seu interlocutor.
É um tubo de luz fluorescente.
Com aquela lógica perversa e infalível que só o estado de sonho apresenta, Júlio não olha para os
lados à procura de um humano. Sabe que foi a luz quem falou. Isto posto, ela prossegue:
- Depende só dela - ela diz, agora com uma voz menos sibilante e mais feminina.
- Por que dela? - Júlio pergunta.
Júlio jura que a luz dá de ombros.
- De quem você acha que é o sonho? - ela diz.
Júlio solta uma gargalhada.
- Essa foi ótima, preciso lembrar de anotar isso tudo para contar à minha analista amanhã - diz.
- Vai ser meio difícil - diz a luz, e ele ainda se pega tentando descobrir onde é a boca do tubo.
- Por quê? - mas ele já sabe a resposta que vem pela proa.
- Você não lembra?
Então é como se o sonho voltasse a ser dele, como se a frase emitida pela luz - porque, fascinado,
percebe que a luz fala com ele por comprimentos de onda - o liberasse, como as três pequenas palavras
fossem um koan zen-budista e o elevassem a uma espécie de nirvana, de sonho dentro de um sonho, ou da
realidade, e ele se lembra de um fiapo de consciência escorrendo de seus olhos junto com os fiapos de
sangue que ainda fluíam pelos pulsos cortados que empapavam o carpete cinza-grafite da sala, o som
ligado - tocando The Cure, agora ele se lembra - e ela chegando, olhando a cena e soltando um grito
doído que o arrepiou e apressou seu adormecimento.
E depois ele não se lembra de mais nada.
Isso não parece um texto de Gertrude Stein?, ele pensa. Lembra que ela gostava muito de Gertrude
Stein. Foi ela quem o apresentou à escritora, aliás.
Mas ele nunca leu Gertrude Stein.
Subitamente Júlio percebe que não está mais na festa, na verdade não estava desde que a luz
começou a falar com ele.
Eles estão num corredor escuro, que a luz ajuda a iluminar, mas não tanto quanto Júlio gostaria. Ele
consegue ver paredes cobertas com tinta cinza-grafite, riscadas e descascadas. Muito velhas. O corredor é
apertado e ele não consegue ver fim. Porque a luz não está no fim do túnel.
- É para cá que venho quando me apagam - a luz lhe diz.
- É para cá que virei quando ela deixar de me sonhar?, ele pergunta.
A luz se cala.
Então Júlio sente outro arrepio.
- É para cá que sempre venho, não é?
A luz nem pisca. Mas não precisa. Ele sabe que isto já aconteceu antes. E acontecerá de novo.
Todas as vezes em que ela sonhar com Júlio, ele será resgatado daquele arquivo da memória e ganhará
vida na rua, na chuva, na fazenda ou simplesmente naquele clube, onde eles foram felizes.
É mais do que poderia esperar.
No fundo do corredor escuro, Júlio sorri. O que mais temia não aconteceu: ela não se esqueceu dele.
Agora Júlio sabe que não está só.

Fábio Fernandes

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