quarta-feira, 19 de maio de 2010

Se um viajante a bordo de um disco...



... caminhasse como você caminha pelos corredores indefinidos, as pontas dos dedos tateando as paredes
metálicas que brilham fraquíssimas uma fosforescência arroxeada lembrando luz negra, sentiria o mesmo frio
que você sente. Está frio, mas você sua; não é para menos. Afinal de contas, por toda a sua vida você desejou
fazer contato com seres extraterrestres e entrar num disco voador.
Você conseguiu.
Devia estar contente, não?
Mas sua fantasia não contava com um seqüestro no alto de um morro em São Tomé das Letras, apenas de
bermuda e camiseta. E faltando o essencial: o par de óculos que lhe faz tanta falta. Você sua, mas é de medo.
De qualquer forma, você é poupado do constrangimento de ter que enxergar algo de importante pelas
paredes maciças dos corredores. Elas não têm fim, e você não vê qualquer abertura ou algo que se assemelhe a
uma porta, passagem, duto de ventilação, o que seja. Você tenta rir: onde já se viu isso? Preocupar-se mais com
o que poderia lhe ser mostrado do que o que lhe está acontecendo?
Você só não é poupado de saber quem o pegou no alto do morro.
O alienígena aparece na outra extremidade do corredor, e vem em sua direção. Seu grau de miopia é grande,
mas você também não é cego: sabe perfeitamente que o ponto escuro contrastando com o metal polido dos
corredores não estava lá antes, e que seu aumento constante é sinônimo de movimento; que você está a bordo
de uma nave extraterrestre é óbvio, você viu as luzes no alto do morro segundos antes de ser erguido do solo.
Portanto, isso só lhe deixa uma opção lógica e racional: o ponto escuro que se aproxima é um alienígena.
Você olha para trás, ou tenta: aos seus cristalinos defeituosos, o cenário é rigorosamente igual ao da frente,
ou seja, uma indefinição metálica. Não há para onde fugir. Mais cedo ou mais tarde o alienígena o alcançará.
Você respira fundo e fica onde está.
E ele se aproxima.
O medo que você esperava sentir não é tão grande. Tantos filmes de ficção científica tinham que servir para
alguma coisa, afinal. O alienígena é mais baixo que você, e não é humanóide; a carapaça brilhosa e os quatro ou
cinco pares de patas mais lembram um inseto. Você sente um cheiro doce demais, quase enjoativo.
Você só se sobressalta quando o alienígena subitamente estica o pescoço comprido e fino e praticamente
encosta um rosto impossível de definir: negro, cheio de rugas que franzem em vários pontos da bola ovalada
que examina a sua face.
A análise não dura muito. Com movimentos bruscos, a criatura - não, criatura não, você se corrige; um ser
que habita uma nave dessas, que cruza o espaço para estudar outras raças,sem dúvida pertence a uma categoria
superior - dá as costas para ele e volta por onde veio. Você continua onde está. Mas o ser alienígena para a
poucos passos. Você força a vista; ele se virou, ou assim parece. Está me esperando, você pensa. E, respirando
fundo mais uma vez, o segue. Sempre apoiando a mão na parede.
A caminhada é longa, mais de meia hora. Você sente a panturrilha esquerda. Mas seu guia é incansável.
Por fim, vocês saem do corredor interminável. Impossível abarcar o diâmetro do aposento onde
desembocam, mas ele é grande, isso você consegue assimilar. Uma lufada de ar fresco -ou refrigerado - se
choca com seu rosto e lhe invade as narinas. Você se sente revigorado.
Contudo, o alienígena não o espera. Por um momento, é impossível localizá-lo: o aposento parece queimar
com luzes de cores quentes, todas estrategicamente colocadas em diversos pontos. Parecem iluminar coisas
específicas, e você quase chega perto da mais próxima, mas então ouve um ruído à sua direita, e uma mancha
negra se movendo. Você localizou o alienígena.
Você perde a noção do tempo; o alienígena passa e para por cada um dos focos de luz. Sob cada um, um
objeto, uma forma de vida, um estado da matéria. Você sabe que o que o alienígena está tentando lhe mostrar
transcenderia a sua compreensão mesmo que pudesse enxergar direito. E você não pode.
E tenta explicar isso para ele, já sabendo que não será fácil. Através de gestos bastante improvisados - você
então se lembra de um amigo mímico, e lamenta não ter a habilidade dele - tenta explicar que as luzes o
acordaram de repente, e que você saiu da barraca sem seus óculos. Gostaria também de acrescentar que o grau
em cada lente é de 9.0, e que estava de operação corretiva marcada para dali a um mês, mas de que adiantaria?
De repente, o alienígena dispara na direção do corredor. Você tenta correr atrás dele, tomando cuidado para
não tropeçarem nada.
Desta vez vocês não demoram muito. Em minutos, entram em outra sala. E seu medo volta.
Pois a sala - desta vez é possível perceber seu diâmetro, é tão grande quanto a anterior - está repleta de
alienígenas, todos iguais ao seu guia. Iguais não, você percebe assim que um deles passa raspando pelo seu
restritíssimo campo visual: mudam as tonalidades, a altura, o diâmetro do rosto. Como os humanos. Você não
sabe por quê, mas isso o faz se sentir bem melhor.
Seu guia se detém diante de dois outros. Você já está começando a ficar irritado com o silêncio quase
absoluto da sala: devem conversar em ultra ou infra-sons, você não tem idéia.
No entanto, eles não falam muito. Logo tomam a dianteira do seu guia e entram em outro corredor, no
extremo oposto da sala. O alienígena se volta para você, e os acompanha. O que mais você pode fazer?
O outro corredor leva a uma sala pequena, cheia de luzes e grandes estruturas reluzentes que você -
obviamente - não consegue enxergar suficiente para reconhecer. Mas, à medida que se aproxima, você percebe:
as estruturas metálicas são leitos. Você está na enfermaria da nave.
Eles se viram em sua direção. Seu guia estende uma das patas e aponta para o leito mais próximo. Ele está
pedindo que se deite na cama. Talvez você pudesse recusar, talvez houvesse outro jeito, mas para todos os
efeitos você está sob o poder deles. Obedece.
Os alienígenas cercam o leito. As luzes fortes o irritam, tornando tudo cada vez mais borrado.
E então seu rosto se abre num sorriso.
Um dos seres leva duas das patas ao seu rosto, à altura dos olhos. Faz gestos em forma de cruz. Outro se
aproxima e fez gestos circulares. Não olham para você. Parecem discutir. Então, você tem certeza: eles
compreenderam o que você quis dizer. Você será operado. Sua visão será corrigida. Um gesto de boa vontade
para com um irmão de outro mundo.
Outro alienígena - certamente o anestesista - enfia uma agulha grossa na veia entre braço e antebraço. Dói.
Mas você suportar isso.
Em segundos seu corpo começa a sentir torpor. Você se entrega à inconsciência, confiante. Eles são
superiores: logo, a conclusão é óbvia. Eles sabem o que estão fazendo. Você ficará curado.
O tempo passa. Você perdeu completamente a noção dos dias. Não há qualquer referencial. Tudo de que
você consegue se lembrar é o gosto amargo na boca ao despertar da anestesia,os toques suaves das patas dos
alienígenas e a sensação de terror ao perceber que alguma coisa não saiu conforme o esperado.
De qualquer forma, você é poupado do constrangimento de ter que enxergar algo de importante. De ter que
enxergar algo.
Cansados, seus dedos tateiam pelos corredores da nave. Não é preciso mais se preocupar com a
luminosidade negra que doía na sua vista. Agora só lhe resta esperar que eles o deixem em algum lugar na
Terra, e seus dedos possam, aliviados, reconhecer o solo, as pedras, o rosto de alguém querido.

Fábio Fernandes

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